quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

De Moçambique, com amor

"De Moçambique, com amor"

              
(Direitos reservados)

A minha passagem por África – “passagem” será um termo desajustado, dado que África, entranha-se-nos e fica em nós –, mais concretamente, os anos vividos durante parte da minha infância e adolescência, em Moçambique, ter-me-ão dado, já então, a noção da imensidão real do Mundo, feito de muitos mundos, diferentes daquele a que, com muita facilidade, chamamos nosso e a que, numa perspetiva mais intimista e egocêntrica, talvez possa chamar meu.

Tudo isto não passa de uma ilusão. O Mundo é o mesmo, o modo de vivê-lo é que é diferente. Penso, pois, que dentro do Mundo cabem muitos mundos, existindo, contudo, uma linha comum e contínua que os une. Essa linha tece e entretece a Humanidade. É por ela que caminhamos para sermos verdadeiramente humanos, para promovermos o ser-se humano e, quantas vezes, tornar-se humano.

Talvez esta consciência e a saudade dos lugares que outrora ocuparam e divertiram os meus sentidos, ensinando-me a verdadeira essência da diversidade cultural, tenham contribuído para a criação de histórias, como a de um pássaro gigante que voa e atravessa o mar com uma bola mágica ­– tão mágica como os sonhos da pequenada, aqueles que habitam no seu brincar –, levando-a até outros meninos, que a recebem felizes, do outro lado do mar. Noutra ocasião, sentada em frente da meiga ondulação do mar do nosso Sul português, escrevi num pequeno poema, estes versos:

Lá longe no mar azul / Vai um barquinho à vela / E os meus olhos presos nela / Uma gaivota me diz / Que aquele barquinho branco / Leva pressa de chegar / À esperança de uma criança / Do outro lado do mar.

Quis o curso inesperado e surpreendente da vida, que fosse eu, mais uma vez, a chegar ao outro lado do mar. Não sob a forma de bola, tão-pouco de barco, não de criança, como outrora fora, mas através da poesia.

Como aconteceu?

Na cidade de Pemba, mais especificamente no Bairro de Mahate, em 2022, nasce o Projeto Karibu, com o objetivo de promover a integração escolar das crianças deslocadas internas, provenientes do conflito armado que tem vindo a ocorrer na província de Cabo Delgado, desde 2017.

(comprasolidaria.pt)

Implementado pela organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD) Helpo (*) e financiado pelo Instituto Camões I.P. e pela Fundação Galp, o projeto já apoiou, diretamente, mais de 600 crianças, com material escolar, alimentação, documentação, roupa e uniformes, além de criar condições para o acolhimento dessas crianças (com a construção de seis novas salas de aula, a reabilitação de casas de banho de uma das escolas e a construção de uma biblioteca comunitária), nas duas escolas de Mahate.

Foi neste contexto que tive a ventura de, solidariamente, dinamizar uma oficina de poesia, a qual decorreu ao longo de quatro sessões online, junto de crianças de várias idades, na sua maioria deslocadas internas, vindas de Cabo Delgado, lugar de conflitos sangrentos que assolam Moçambique, há demasiado tempo.

Muitas das crianças com as quais interagi, mal sabiam Português. O dialeto com o qual cresceram também não é o mesmo que encontraram em Pemba, para onde foram deslocadas. Existiram, pois, muitas dificuldades na comunicação, mas elas nunca desistiram e eu também não.

Como elo fundamental, participou igualmente um ser humano inexcedível na sua dedicação, tenaz e resiliente, sempre cuidadoso e cuidador da dor e dos traumas daquelas crianças. Chama-se Leandro Martins e é, até ao momento, voluntário da Helpo. Também ele viu a sua casa e Missão serem queimadas na aldeia onde vivia, junto da comunidade, em Cabo Delgado, na qual pretendia desenvolver um projeto humanitário.

Tudo foi destruído, num voraz e selvagem ataque feito pelos insurgentes. Nenhuma família regressou mais àquele lugar. Muitos viram os seus entes queridos serem engolidos pela fúria da maldade humana. Ele próprio se viu na circunstância de ser um de deslocado interno.

Voltemos a Karibu.

Voltemos à oportunidade de atravessar mares e de estar em contacto com crianças, em Pemba, capital da província de Cabo Delgado, na costa nordeste de Moçambique. Tudo, diga-se em abono da verdade, graças às possibilidades que nos oferecem, hoje, as novas tecnologias de informação e a Internet, em particular.

Projeto Karibu. Uma biblioteca comunitária. Crianças e jovens com muita vontade de aprender. Um workshop de poesia. Nós à distância.

(Direitos reservados)

Como chegar àqueles seres, com o(s) seu(s) próprio(s) mundo(s), feito(s) de lágrimas e de sorrisos? Feitos de um presente no qual o passado está, dramaticamente, gravado e se projeta, simultaneamente, o sonho de um futuro melhor?

Levei-lhes poesia. Selecionei cuidadosamente os poemas que lhes li.

Levei-lhes palavras e quis que percebessem que as mesmas têm corpo e alma. Têm vida própria, para além dos ditames da gramática. Têm cor, movimento, sonoridade. São capazes de criar ritmos, musicalidade, e de se projetarem no papel ou de viajarem na mente, com uma existência inesperada.

Algumas palavras dançaram nas folhas, outras voaram pelos céus. Creio que muitas brincaram às escondidas dentro da biblioteca. Várias choraram e depressa se transformaram em preces, em orações eivadas de sagrado, como o são a vida, a família, o amor, tal como também são a tristeza e a alegria, a perda, o medo ou o reencontro.

Pedi-lhes que imaginassem e libertassem as palavras. Palavras como “pássaro”, “mar”, “peixe”, “liberdade”, “montanha”, “rio”, “amizade”, “mãe”, “escola” e tantas outras. Tantas foram as que me ensinaram. Pedi-lhes que deixassem que as palavras casassem com enlevo as suas almas, o seu ser (o meu cérebro trabalhava a duas velocidades: dizer o complexo, numa linguagem simples; dizer depressa, pausadamente). Palavras. Umas foram abandonadas, deixadas num qualquer lugar esconso da memória, outras agarradas com avidez, como se de pão se tratasse. É compreensível. Quando se escreve, a empatia com as palavras é tão necessária como o sal que tempera a vida.

Passo a passo, comandados por um tempo muito escasso e dilatado, paradoxalmente (entenda-se que o tempo tem uma dimensão própria para cada ser e cada lugar; não coincidem, é certo) os textos foram chegando. Eu lia-os e insistia que podiam ser melhorados, “aqui” e “ali”.

Em determinado momento, dei comigo a pensar que iríamos perder o “fardo”. As crianças não estavam a escrever poemas. Eram pequenos fragmentos em prosa, remendando pedaços do seu passado recente e, sobretudo, costurando os sonhos do presente. Mas aqueles textos que me iam chegando, estavam plenos de sentimentos, de emoções, de ambições. Eram de gente a crescer. A crescer em todos os sentidos, incluindo na aprendizagem da língua portuguesa.

Nova sessão, novos textos. Escritos em casa, na biblioteca, no silêncio que respondia ao meu chamamento. Meu e do Leandro. Já havia laivos de poesia. Rasgos de poemas.

Passo a passo. Sem desistir.

Conheci novos casamentos e enamoramentos de palavras. Todas cheias de vida, com histórias dentro. Grávidas.

(Direitos reservados)

Nasceu, assim, um livrinho, escrito pelas vinte e uma crianças, participantes nesta oficina de poesia e beneficiárias do projeto Karibu. “Dentro de nós”, então, lhe chamámos.

Todas as crianças e jovens aprendizes de poetas o receberam e exibiram orgulhosamente.

Um pedaço deles e delas vive dentro daquele livro.

Afinal, mesmo no caminho árduo e difícil se encontra o prazer e o esforço recompensado. Quiçá, uma nesga de felicidade ou o Mundo inteiro.

………………….

(*) A Associação Helpo é uma organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD) que desempenha a sua atividade, desde 2008, em Portugal, em Moçambique e em São Tomé e Príncipe, para a promoção do desenvolvimento, através da educação e da nutrição. A Helpo desenvolve a sua atividade em comunidades rurais, participando na construção de escolas, de bibliotecas, de creches, de centros de nutrição, de cantinas escolares e de sistemas de aproveitamento de águas pluviais, a par da formação comunitária, da educação para a saúde, da assistência e da formação contínua, financiando as suas atividades através do Programa de Apadrinhamento de Crianças à Distância, de donativos livres e de projetos financiados por agências internacionais.

in 

https://sinalaberto.pt

Celeste Almeida Gonçalves

A revelação


A revelação


                             Ilustração de Cristina Malaquias


O menino chegou a casa. Era um pequeno apartamento num prédio de seis andares. Ele vivia no terceiro. Entrou e dirigiu-se para o seu quarto. Da janela, avistava uma nesga do grande rio, lá longe, imponente na sua cor azul-acinzentada. Por momentos, navegou pelas suas águas como os marinheiros de outrora, sentindo-se um aventureiro à descoberta de novos mundos.

O seu pensamento já estava tomando a forma de uma caravela, com as velas ao vento, e os seus olhos espreitavam ávidos por uma luneta, vislumbrando novas terras! Depois, num ápice, estava num daqueles navios com vários andares, tantos ou mais do que os do seu prédio. Uma verdadeira cidade! Ele era o capitão, pronto para mais uma viagem. Enquanto assim estava urdindo aventuras, ouvia os pais a conversar na sala ao lado. De vez em quando, ouvia uma frase mais exaltada e, após, um silêncio de alguns segundos.

Retomavam a seguir o fio à meada e o ritmo da conversa parecia retornar ao mesmo ponto. Há já algum tempo que o menino sentia que algo não estava bem. A mãe parecia preocupada e até triste. O pai andava nervoso e, ultimamente, tinha arranjado desculpas para escapar aos planos de fim de semana. Não tinham ido pescar, nem tão-pouco andar de bicicleta ao longo do rio. O pai fechava-se em si mesmo e ficava com o olhar vazio, macambúzio, esquecido na penumbra da sala, respirando aquele silêncio incómodo. O olhar observador do menino dizia-lhe que algo se passava. Chegada a hora do jantar, sentaram-se à mesa. O silêncio dos pais era acompanhado de um visível nervosismo. O menino olhava para um e para o outro, tentando descortinar alguma razão para aquele comportamento fora do normal.

A certa altura, hesitante e, ao mesmo tempo, solene, o pai disse: – Temos de conversar, Francisco! O menino assentiu receoso. Pelo tom da voz do pai, era coisa séria. Pensou que talvez tivesse feito algum disparate, mas não se recordava de nada.

– Vivemos tempos difíceis e, embora eu queira o melhor para a nossa família, há coisas que não dependem de mim – prosseguiu o pai. O menino ficou atónito, sem saber o que dizer. Nem parecia o pai, habitualmente tão bem-disposto e confiante. O seu rosto era o espelho da mágoa e as suas mãos inquietas amarrotavam nervosamente o guardanapo.

O pai continuou: – Sabes que, na vida, podem surgir dificuldades e é preciso saber enfrentá-las, encontrar soluções e nunca desanimar!

Francisco olhou para a mãe e viu uma lágrima correr-lhe na face. Ela disfarçou, como era seu hábito, tentando trocar as tristezas por alegrias, mas Francisco, que bem conhecia a mãe, podia ver a angústia estampada nos seus olhos. O pai prosseguiu a tarefa de explicar ao menino a situação da família. Francisco ouviu a palavra “desemprego” e escutou-o com atenção. Percebeu, então, o que se passava. A fábrica onde o pai trabalhava fechara e ele tinha ficado sem o trabalho que era o principal sustento da família, pois a mãe ganhava muito pouco nos arranjos de costura que costumava fazer. “E agora?” – era a pergunta que não lhe saía da cabeça.

Os seus olhos expressivos não escondiam o desalento, e os pais logo se apressaram a animá-lo. Mas o que tinham para lhe dizer, mais uma vez, não era fácil: – Decidimos ir para a aldeia onde vive o avô Daniel. Lá, temos casa, terra para cultivar e a companhia do avô. O pai conseguiu um emprego na vila e a mãe poderá ocupar-se da quinta e dos animais de que tanto gosta. Talvez até possa criar um pequeno negócio. Não será fácil, mas estou certo de que iremos viver melhor!

As palavras do pai ecoavam dentro de si. Apesar de gostar muito do avô e da aldeia onde costumava passar as férias, o menino sentia-se confuso e desiludido. Um turbilhão de ideias invadia a sua cabeça. Pensava no professor José, no João, na bola, nos amigos e amigas da sua escola. Até já sentia a falta dos aviões e dos elétricos, das pessoas de olhar vago e distante, das ruas ruidosas e do seu prédio. Pensava, especialmente, no seu quarto e na janela pela qual espreitava o grande rio com os seus barcos vagando nas águas calmas, fazendo-o sonhar com viagens fantásticas! “Como será viver longe daqui?”, interrogava-se.

A mãe, percebendo a preocupação do menino, procurou serená-lo: – Vais ter muito espaço para brincar, farás novos amigos e poderás crescer num ambiente saudável e tranquilo! Além disso, terás a companhia do Cusco! Sempre gostaste do Cusco!

O Cusco era o cão do avô Daniel. Um rafeiro nascido no meio das pedras, esperto e ágil, sempre a farejar e a abanar a cauda. Quando ia de férias para casa do avô, era uma alegria ver o Cusco. Ao chegar, fazia-lhe uma grande receção. Saltava, lambia-o todo e logo o desafiava para uma boa correria pelos campos. Era um cão lindo, de pêlo castanho-claro e olhos cor-de-mel, muito vivos.

Nessa noite, Francisco tinha dificuldade em adormecer. As aulas estavam quase a chegar ao fim e lá partiria ele para outro lugar. Não imaginava como iria ser. Só pensava no que iria perder. Decidiu não correr as persianas do quarto. A janela deixava entrar a luz viva dos candeeiros da rua. Reparou que não conseguia ver as estrelas e deu por si a imaginar o céu estrelado da aldeia. Entretanto, aninhou a cabeça na almofada e deixou que as lágrimas escorressem livremente.

(*) In “A Oliveira Mágica”

Celeste Almeida Gonçalves

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