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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

BANCHI - Novela - Capítulo 2 "Um encontro inesperado"

 

                                                        Ilustração de Sandra Serra

Todos os garotos da minha idade acalentavam o sonho de construir uma cabana. Munido de tábuas, martelo e pregos, preciosos materiais encontrados aqui e ali, daquelas coisas que pertencem à imaginação e querer dos miúdos, lá ia eu, durante os fins de semana e nas férias, fazer a minha cabana. A sobreira, pobre árvore, consentia naquele desafio e, diga-se de passagem, era suficientemente grande para suportar o peso do meu engenho.

Foi numa dessas empreitadas que dei por mim a ouvir um latido, muito sumido no início, para ganhar ânsias de raiva e uma força tal, que me obrigou a procurar a sua origem.

Sobre uma laje de granito, emoldurada pelo verde das ervas salpicadas por pequenas flores silvestres e rodeada por enormes pedras, ali depositadas pelas máquinas das obras em construção, lá estava a bolita de pêlo. Com a barriga a rojar o chão, inchada, quiçá pelo generoso alimento da progenitora, aventurava-se, desprotegida, por um caminho que ela própria teimava em descobrir. Era um cachorro lindo, de cor branca e castanho mel, que mal abria os olhos. Pequeno no seu tamanho, não obstante, já se adivinhava neste ser, a força da natureza. Fosse pela ousadia de se afastar da ninhada, fosse pelo seu temperamento aventureiro, de procura e de afirmação num lugar onde os outros cachorrinhos se escondiam, para não serem surpreendidos e encontrados, este pequeno bicho era deveras cativante. Rapidamente se transformou num desafio, talvez maior do que eu pudesse supor, pensava para comigo, perante a emoção que tomara conta de mim.

Ali fiquei, por momentos, com o olhar preso no animal e mil e uma recordações do querer insistente de um cão que nunca tive, afloraram naqueles instantes. Não resistindo ao seu insistente chamamento, hipnotizado por aquele inesperada presença,  peguei nele e, antes que o destino me pregasse uma partida, desatei em passo certo e determinado a caminhar em direção a casa. Tenho a viva recordação da mãe a ver-me chegar, desta vez, já não criança, mas um rapaz de catorze anos, com o cãozito ao colo. Que estava sozinho, em cima de uma fria e inóspita pedra, coitadito, ia eu dizendo, estas e outras coisas, enfim, palavras certeiras, procuradas para convencer, com o afinco de quem defende uma causa. Entretanto, a mãe, olhava para o bebezito, enternecida e, o meu irmão mais novo, apressava-se a afirmar que era nosso, que não podíamos abandoná-lo. Seria uma ação condenável, não podia acontecer, repetia ele.

O drama começou.

- Podemos tentar dá-lo a alguém, ou levá-lo para o canil da proteção dos animais. – dizia a mãe. – Talvez alguém queira adotá-lo.

- Mãe! Ficamos com ele, por favor! Percebe-se logo, que não será muito grande. Já é uma vantagem. Temos um jardim, podemos ter um cãozinho. Por favor, mãe! -   implorava o meu irmão que, tal como eu, crescera com uma vontade infinita de ter um animal de estimação, de preferência um cão.

Estava a fazer-se tarde e o tempo urgia. Naquele dia, tínhamos aulas de música na cidade próxima, a alguns quilómetros da vila onde vivíamos. Mas nós ali estávamos, com a bolita de pêlo a arrastar-se pelo chão da cave da casa, um tanto perdida e provavelmente com fome.

O meu silêncio era sempre acompanhado por um certo espírito de observação. Perante todo este aparato, os meus olhos estavam focados no animalzinho e confesso que as palavras já pouca importância tinham. Observava também a minha mãe. Parecia ter um olhar cúmplice.

- Arranjem uma caixinha, e uns trapinhos. Deixamos o cãozinho dentro da caixa e vamos embora. Quando regressarmos, pensamos melhor no assunto. – disse ela, pondo fim àquele impasse.

O meu coração adivinhou uma pequena esperança. Esperança não era ainda, pois as deceções tinham sido muitas, mas ainda assim, havia naquelas palavras, enfim, naquela decisão da mãe, qualquer coisa que poderia tornar-se numa outra coisa. Não sei se me entendem.

- Quando o pai chegar vai ver o cão. Como é que vai ser? – atrevi-me a adiantar, pensando já no episódio seguinte.

- Eu telefono-lhe a explicar o sucedido e depois conversamos juntos. – justificou a mãe.

Fomos para o Conservatório. As aulas voaram e eu só queria ir para casa, voltar a ver aquela esperança em figura de cão, na realidade, um pequeno cachorrinho. Repentinamente, o dia tinha ganho uma novidade, uma expectativa.

No regresso a casa, a mãe telefonou ao pai.

- Já vi! Já vi! – respondeu ele. – Um belo serviço, é o que é!

As frases do pai eram sempre curtas e raramente deixavam dúvidas sobre os seus pensamentos ou intenções. Mas, quando a mãe me repetiu a sua resposta, confesso que fiquei confuso. Parecia querer dizer que estávamos com um problema e que teríamos de o solucionar de algum modo. Seria? Tinha para mim a secreta esperança de que também ele ficasse enfeitiçado pela bolita de pêlo. Quem sabe se a solução seria adotarmos a bolita de pêlo?

Certo é que o meu pensamento estava totalmente tomado pela existência daquele ser, imprevisto e quase improvável. Estaria a sonhar?

O meu irmão, mais falador do que eu, afirmava abertamente que o cachorrito seria nosso. Lá ia ele, no banco de trás, entretido a imaginar nomes para o animal, sítios da casa em que poderia dormir, como é que ia ser alimentado… Não se calava. Enquanto isso, eu pensava com os meus botões “Será que é desta?”.

Celeste de Almeida Gonçalves

 


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Banchi - Novela - Capítulo 1 "Um desejo incompreendido"



                                                                           Ilustração de Sandra Serra

Confesso-vos que nunca compreendi a intransigência do meu pai quando este afirmava, sem qualquer lampejo de hesitação, que não queria ter um animal de estimação. Depois, invocava uma série de razões, todas muito válidas, mas sem qualquer préstimo para o meu profundo desejo de ter um cão. Tudo se resumia a isto: Não tínhamos vida para cuidar de um animal doméstico. Um cão, no caso do meu insistente pedido, seria uma fonte de problemas, tanto mais que éramos uma família de seis. O carro já era pequeno para nós, quanto mais para albergar um peludo, sobretudo durante as viagens que fazíamos com frequência, até à casa dos meus avós, a mais de duzentos quilómetros de distância. Uma prisão! Era assim que o meu pai via a existência de um cão, entre nós.

Durante alguns anos, foram infrutíferas as tentativas para o convencer. A mãe, mais flexível, sorria complacente, como que dizendo, que sim, mas o pai, esse, permanecia irredutível.

Lembro-me bem do dia em que ao sair da escola, me deparei com uma ninhada de lindos cachorrinhos, no jardim de um colega. Eram tão lindos, que hoje, à distância do tempo, ainda sinto o coração a palpitar e a derreter-se de ternura e ansiedade perante aqueles seres tão cativantes. Os meus olhos a brilhar de admiração e a tentação a vencer o possível ralhete do pai e as advertências da mãe. Vai daí e, perante a oferta do meu amigo, não resisti e coloquei o cãozinho dentro da mochila, no meio dos livros e cadernos.

Lá fui para casa e, acreditem, levava o mundo na minha mochila. Um mundo precioso.

Ao cimo da rua avisto a minha mãe no jardim e apresso o passo, sem saber muito bem como descalçar aquela bota. Mas como quem não arrisca, não petisca, avancei ligeiro, rua abaixo, com os olhos a fugir para o impossível e a mochila a estrebuchar por todo o lado.

- Olá, boa tarde também para ti! Porquê toda essa pressa?  – disse a mãe, apercebendo-se da estranheza da situação.

As mães têm sempre poderes de adivinhação.

- Boa tarde, mãe! Vou para o meu quarto, tenho muitos trabalhos de casa para fazer.

E eu convencido de que iria conseguir manter o cachorro incógnito, num esconderijo, primeiro no quarto, depois logo se veria. O que interessava, era introduzi-lo em casa, preparar o terreno e, depois do facto consumado…enfim…tão lindo, talvez os pais se deixassem cativar, também.

- Espera aí, filho! O que tens na tua mochila? Vá, mostra lá! Parece que está viva!

Apanhado em flagrante delito, abri a mochila, derrotado no meu intento de ter um cão. A mãe abriu os olhos como eu nunca vira, pegou no cachorro e ergueu-o bem alto, entre um belo sorriso e um contrair de lábios. Depois, veio o esperado discurso.

- Eu sei que queres ter um animal de estimação, mas este é muito pequeno, ainda precisa dos cuidados da mãe e tem dono. Não podemos ficar com ele. Além de tudo isso, o pai não ia aceitar. Um dia, quem sabe, talvez tenhamos um cão. E pensa que, quando fores adulto, talvez possas ter o animal que tanto desejas.

Ser adulto era tão longe. Tão longe, que me entristeceu ser ainda criança. Quanto tempo faltará para ser adulto? Perguntava a mim próprio. - Uma eternidade - respondia eu, num exercício muito comum, naquela altura, que era o de fazer perguntas incómodas e encontrar, quase sempre, respostas perturbadoras . Eu era um garoto de sete anos para quem a vida já começava a revelar o seu lado problemático e, até, misterioso. 

Cabisbaixo e triste, fui devolver o cachorrito à ninhada, desta vez, já não na mochila, mas ao colo. Prolonguei aqueles minutos, o mais que pude. Enquanto o tinha ao colo era meu, o cãozinho, tão pequenino e vivaço, parecia já querer brincar, com os olhitos muito pretos fincados nos meus.

Passaram vários anos sem que o desejo de ter um cão se concretizasse. Cá dentro sentia uma pequena mágoa e, só a Mitzi, a cadela dos meus avós ia ajudando a suportar a ausência de um patudo espevitado. Mas convenhamos, não era a mesma coisa. Tratava-se de uma cadela muito mimada, de porte altivo, sempre junto do meu avô, enroscada nas mantas e disputando os sofás com todos lá em casa, para desespero da minha avó. Estão a imaginar um dogue alemão azul, a competir por um sofá? Fazia-o com tal mestria que era digno de se ver. Gostava de se deitar ao comprido, a toleirona e tinha um jeitinho especial para ser a primeira a chegar ou, então, começar por sentar-se, para depois, sorrateiramente, ir empurrando os obstáculos com o seu pesado corpo. Os obstáculos éramos nós, pessoas, está claro.

Quando tal acontecia, e era muito frequente, o meu pai abanava a cabeça e revirava os olhos, desaprovando aquele atrevimento  consentido. Por estas ocasiões jorravam conversas sobre cães e de como educá-los. Que o dono é que mandava, que tinham de sentir a sua autoridade, enfim, muita prosa para pouco efeito, sobretudo nos meus avós que viam na cadela uma espécie de pessoa. A verdade é que  era uma grande companhia para o meu avô e uma carga de trabalhos para a minha avó que, nem por isso, gostava menos dela.

Quando vinham à quinta, a Mitzi viajava no banco de trás da carrinha. Ficava eufórica quando via todo aquele espaço a perder de vista, convidando-a para correr. Era cadela de cidade, não conhecia a liberdade do campo, a não ser, quando os meus avós vinham à apanha da azeitona ou à vindima. E que tentação era banhar-se na água da charca, sempre a chamar por ela. Mas, qual quê! Nem pensar. Estava proibida de aventurar-se campo fora e muito menos na charca, pois podia afogar-se. – Aqui, Mitzi! – chamava o avô, estendendo uma manta no chão, onde ela prontamente se deitava.

A minha avó cozinhava arroz carolino com frango sem pele, temperado com azeite virgem e alho, bem saboroso por sinal, disse-o o meu irmão mais novo que, certo dia, estando com fome se dirigiu ao fogão e não resistiu a comê-lo, sem saber que era o arroz da cadela.

Estava tudo explicado. Para os meus avós, a Mitzi não era bem uma cadela. Era um ser que fazia parte das  suas vidas, uma amiga de quatro patas, que além de afeto e alegrias, os ocupava com mil e uma preocupações e cuidados.  

Nove anos depois da sua chegada, como presente oferecido pelo meu tio, a Mitzi partiu.Teve direito a todos os cuidados de saúde, até fechar os olhos para a vida, já muito velhinha. 

Nesse ano, pelo Natal, o meu avô surpreendeu todos, quando tirou do bolso um papel e, um pouco trémulo pela comoção, leu um poema que se intitulava “Mitzi”.

Fez-se um silêncio estranho e embaraçoso, na sala. Depois de o ler afastou-se, com os olhos lacrimejados, guardando o papel no bolso, como se de algo sagrado se tratasse. 

Creio que, naquele momento, todos percebemos que certos animais nunca vão embora.

Próximo capítulo: "O encontro inesperado"

Celeste Almeida Gonçalves


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