Todos os garotos da minha idade
acalentavam o sonho de construir uma cabana. Munido de tábuas, martelo e
pregos, preciosos materiais encontrados aqui e ali, daquelas coisas que
pertencem à imaginação e querer dos miúdos, lá ia eu, durante os fins de semana
e nas férias, fazer a minha cabana. A sobreira, pobre árvore, consentia naquele
desafio e, diga-se de passagem, era suficientemente grande para suportar o peso
do meu engenho.
Foi numa dessas empreitadas que dei por
mim a ouvir um latido, muito sumido no início, para ganhar ânsias de raiva e
uma força tal, que me obrigou a procurar a sua origem.
Sobre uma laje de granito, emoldurada
pelo verde das ervas salpicadas por pequenas flores silvestres e rodeada por enormes
pedras, ali depositadas pelas máquinas das obras em construção, lá estava a
bolita de pêlo. Com a barriga a rojar o chão, inchada, quiçá pelo generoso alimento
da progenitora, aventurava-se, desprotegida, por um caminho que ela própria
teimava em descobrir. Era um cachorro lindo, de cor branca e castanho mel, que
mal abria os olhos. Pequeno no seu tamanho, não obstante, já se adivinhava neste
ser, a força da natureza. Fosse pela ousadia de se afastar da ninhada, fosse
pelo seu temperamento aventureiro, de procura e de afirmação num lugar onde os
outros cachorrinhos se escondiam, para não serem surpreendidos e encontrados, este
pequeno bicho era deveras cativante. Rapidamente se transformou num desafio,
talvez maior do que eu pudesse supor, pensava para comigo, perante a emoção que
tomara conta de mim.
Ali fiquei, por momentos, com o olhar preso
no animal e mil e uma recordações do querer insistente de um cão que nunca
tive, afloraram naqueles instantes. Não resistindo ao seu insistente chamamento,
hipnotizado por aquele inesperada presença, peguei nele e, antes que o destino me pregasse
uma partida, desatei em passo certo e determinado a caminhar em direção a casa.
Tenho a viva recordação da mãe a ver-me chegar, desta vez, já não criança, mas
um rapaz de catorze anos, com o cãozito ao colo. Que estava sozinho, em cima de
uma fria e inóspita pedra, coitadito, ia eu dizendo, estas e outras coisas,
enfim, palavras certeiras, procuradas para convencer, com o afinco de quem
defende uma causa. Entretanto, a mãe, olhava para o bebezito, enternecida e, o
meu irmão mais novo, apressava-se a afirmar que era nosso, que não podíamos
abandoná-lo. Seria uma ação condenável, não podia acontecer, repetia ele.
O drama começou.
- Podemos tentar dá-lo a alguém, ou
levá-lo para o canil da proteção dos animais. – dizia a mãe. – Talvez alguém
queira adotá-lo.
- Mãe! Ficamos com ele, por favor!
Percebe-se logo, que não será muito grande. Já é uma vantagem. Temos um jardim,
podemos ter um cãozinho. Por favor, mãe! - implorava
o meu irmão que, tal como eu, crescera com uma vontade infinita de ter um
animal de estimação, de preferência um cão.
Estava a fazer-se tarde e o tempo urgia.
Naquele dia, tínhamos aulas de música na cidade próxima, a alguns quilómetros
da vila onde vivíamos. Mas nós ali estávamos, com a bolita de pêlo a
arrastar-se pelo chão da cave da casa, um tanto perdida e provavelmente com
fome.
O meu silêncio era sempre acompanhado
por um certo espírito de observação. Perante todo este aparato, os meus olhos
estavam focados no animalzinho e confesso que as palavras já pouca importância
tinham. Observava também a minha mãe. Parecia ter um olhar cúmplice.
- Arranjem uma caixinha, e uns
trapinhos. Deixamos o cãozinho dentro da caixa e vamos embora. Quando
regressarmos, pensamos melhor no assunto. – disse ela, pondo fim àquele
impasse.
O meu coração adivinhou uma pequena
esperança. Esperança não era ainda, pois as deceções tinham sido muitas, mas
ainda assim, havia naquelas palavras, enfim, naquela decisão da mãe, qualquer
coisa que poderia tornar-se numa outra coisa. Não sei se me entendem.
- Quando o pai chegar vai ver o cão.
Como é que vai ser? – atrevi-me a adiantar, pensando já no episódio seguinte.
- Eu telefono-lhe a explicar o sucedido
e depois conversamos juntos. – justificou a mãe.
Fomos para o Conservatório. As aulas
voaram e eu só queria ir para casa, voltar a ver aquela esperança em figura de
cão, na realidade, um pequeno cachorrinho. Repentinamente, o dia tinha ganho uma
novidade, uma expectativa.
No regresso a casa, a mãe telefonou ao
pai.
- Já vi! Já vi! – respondeu ele. – Um
belo serviço, é o que é!
As frases do pai eram sempre curtas e
raramente deixavam dúvidas sobre os seus pensamentos ou intenções. Mas, quando
a mãe me repetiu a sua resposta, confesso que fiquei confuso. Parecia querer
dizer que estávamos com um problema e que teríamos de o solucionar de algum
modo. Seria? Tinha para mim a secreta esperança de que também ele ficasse
enfeitiçado pela bolita de pêlo. Quem sabe se a solução seria adotarmos a
bolita de pêlo?
Certo é que o meu pensamento estava
totalmente tomado pela existência daquele ser, imprevisto e quase improvável. Estaria
a sonhar?
O meu irmão, mais falador do que eu, afirmava
abertamente que o cachorrito seria nosso. Lá ia ele, no banco de trás, entretido
a imaginar nomes para o animal, sítios da casa em que poderia dormir, como é
que ia ser alimentado… Não se calava. Enquanto isso, eu pensava com os meus
botões “Será que é desta?”.
Celeste de Almeida Gonçalves
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