Confesso-vos que nunca compreendi a
intransigência do meu pai quando este afirmava, sem qualquer lampejo de
hesitação, que não queria ter um animal de estimação. Depois, invocava uma
série de razões, todas muito válidas, mas sem qualquer préstimo para o meu profundo
desejo de ter um cão. Tudo se resumia a isto: Não tínhamos vida para cuidar de
um animal doméstico. Um cão, no caso do meu insistente pedido, seria uma fonte
de problemas, tanto mais que éramos uma família de seis. O carro já era pequeno
para nós, quanto mais para albergar um peludo, sobretudo durante as viagens que
fazíamos com frequência, até à casa dos meus avós, a mais de duzentos quilómetros
de distância. Uma prisão! Era assim que o meu pai via a existência de um cão, entre
nós.
Durante alguns anos, foram infrutíferas as tentativas para o convencer. A mãe, mais flexível, sorria complacente, como que dizendo, que sim, mas o pai, esse, permanecia irredutível.
Lembro-me bem do dia em que ao sair da escola, me deparei com uma ninhada de lindos cachorrinhos, no jardim de um colega. Eram tão lindos, que hoje, à distância do tempo, ainda sinto o coração a palpitar e a derreter-se de ternura e ansiedade perante aqueles seres tão cativantes. Os meus olhos a brilhar de admiração e a tentação a vencer o possível ralhete do pai e as advertências da mãe. Vai daí e, perante a oferta do meu amigo, não resisti e coloquei o cãozinho dentro da mochila, no meio dos livros e cadernos.
Lá fui para casa e, acreditem, levava
o mundo na minha mochila. Um mundo precioso.
Ao cimo da rua avisto a minha mãe no
jardim e apresso o passo, sem saber muito bem como descalçar aquela bota. Mas
como quem não arrisca, não petisca, avancei ligeiro, rua abaixo, com os olhos a
fugir para o impossível e a mochila a estrebuchar por todo o lado.
- Olá, boa tarde também para ti! Porquê toda essa pressa? – disse a mãe, apercebendo-se da estranheza da situação.
As mães têm sempre poderes de
adivinhação.
- Boa tarde, mãe! Vou para o meu quarto, tenho muitos trabalhos de casa para fazer.
E eu convencido de que iria conseguir
manter o cachorro incógnito, num esconderijo, primeiro no quarto, depois logo
se veria. O que interessava, era introduzi-lo em casa, preparar o terreno e,
depois do facto consumado…enfim…tão lindo, talvez os pais se deixassem cativar,
também.
- Espera aí, filho! O que tens na tua
mochila? Vá, mostra lá! Parece que está viva!
Apanhado em flagrante delito, abri
a mochila, derrotado no meu intento de ter um cão. A mãe abriu os olhos como
eu nunca vira, pegou no cachorro e ergueu-o bem alto, entre um belo sorriso e
um contrair de lábios. Depois, veio o esperado discurso.
- Eu sei que queres ter um animal
de estimação, mas este é muito pequeno, ainda precisa dos cuidados da mãe e tem
dono. Não podemos ficar com ele. Além de tudo isso, o pai não ia aceitar. Um dia,
quem sabe, talvez tenhamos um cão. E pensa que, quando fores adulto, talvez
possas ter o animal que tanto desejas.
Ser adulto era tão longe. Tão longe, que
me entristeceu ser ainda criança. Quanto tempo faltará para ser adulto?
Perguntava a mim próprio. - Uma eternidade - respondia eu, num exercício muito
comum, naquela altura, que era o de fazer perguntas incómodas e encontrar, quase sempre, respostas perturbadoras . Eu era um garoto de sete anos para quem a vida já começava a revelar o seu lado problemático e, até, misterioso.
Cabisbaixo e triste, fui devolver o
cachorrito à ninhada, desta vez, já não na mochila, mas ao colo. Prolonguei
aqueles minutos, o mais que pude. Enquanto o tinha ao colo era meu, o cãozinho,
tão pequenino e vivaço, parecia já querer brincar, com os olhitos muito pretos
fincados nos meus.
Passaram vários anos sem que o desejo de
ter um cão se concretizasse. Cá dentro sentia uma pequena mágoa e, só a Mitzi,
a cadela dos meus avós ia ajudando a suportar a ausência de um patudo
espevitado. Mas convenhamos, não era a mesma coisa. Tratava-se de uma cadela muito
mimada, de porte altivo, sempre junto do meu avô, enroscada nas mantas e
disputando os sofás com todos lá em casa, para desespero da minha avó. Estão a imaginar um dogue alemão azul, a competir por um sofá? Fazia-o com tal mestria que era
digno de se ver. Gostava de se deitar ao comprido, a toleirona e tinha um
jeitinho especial para ser a primeira a chegar ou, então, começar por sentar-se,
para depois, sorrateiramente, ir empurrando os obstáculos com o seu pesado
corpo. Os obstáculos éramos nós, pessoas, está claro.
Quando tal acontecia, e era muito
frequente, o meu pai abanava a cabeça e revirava os olhos, desaprovando aquele
atrevimento consentido. Por estas ocasiões jorravam conversas
sobre cães e de como educá-los. Que o dono é que mandava, que tinham de sentir
a sua autoridade, enfim, muita prosa para pouco efeito, sobretudo nos meus avós
que viam na cadela uma espécie de pessoa. A verdade é que era uma
grande companhia para o meu avô e uma carga de trabalhos para a minha avó que, nem por isso, gostava menos dela.
Quando vinham à quinta, a Mitzi viajava
no banco de trás da carrinha. Ficava eufórica quando via todo aquele espaço a
perder de vista, convidando-a para correr. Era cadela de cidade, não conhecia a
liberdade do campo, a não ser, quando os meus avós vinham à apanha da azeitona ou à vindima. E
que tentação era banhar-se na água da charca, sempre a chamar por ela. Mas, qual
quê! Nem pensar. Estava proibida de aventurar-se campo fora e muito menos na charca, pois podia afogar-se. – Aqui, Mitzi! – chamava o avô, estendendo uma manta no chão, onde
ela prontamente se deitava.
A minha avó cozinhava arroz carolino com frango sem pele, temperado com azeite virgem e alho, bem saboroso por sinal, disse-o
o meu irmão mais novo que, certo dia, estando com fome se dirigiu ao fogão e não
resistiu a comê-lo, sem saber que era o arroz da cadela.
Estava tudo explicado. Para os meus avós, a Mitzi não era bem uma cadela. Era um ser que fazia parte das suas vidas, uma amiga de quatro patas, que além de afeto e alegrias, os ocupava com mil e uma preocupações e cuidados.
Nove anos depois da sua chegada, como presente oferecido pelo meu tio, a Mitzi partiu.Teve direito a todos os cuidados de
saúde, até fechar os olhos para a vida, já muito velhinha.
Nesse ano, pelo Natal, o meu avô surpreendeu
todos, quando tirou do bolso um papel e, um pouco trémulo pela comoção, leu um
poema que se intitulava “Mitzi”.
Fez-se um silêncio estranho e embaraçoso, na sala. Depois de o ler afastou-se, com os olhos lacrimejados, guardando o papel no bolso, como se de algo sagrado se tratasse.
Creio que, naquele momento, todos percebemos que certos animais nunca vão embora.
Próximo capítulo: "O encontro inesperado"
Celeste Almeida Gonçalves